Gosto tanto das canções que este rapaz escreve
E porque é Natal e eu este ano estou particularmente natalícia
Gosto tanto das canções que este rapaz escreve
E porque é Natal e eu este ano estou particularmente natalícia
Nem acredito que estou quase a ver este senhor ao vivo e a cores outra vez.
Lembro-me de gostar, desde muito criança, do cheiro a perfumes fortes misturado com tabaco. Sobretudo nas mulheres. Também adorava o cheiro dos cigarros acesos dentro do carro, do fumo a viajar até ao banco de trás onde eu o inalava com prazer. Acho que o prazer que tirava destes cheiros tinha a ver com as fantasias que construía em volta deles, com o que me transmitiam de luxúria, de algo proibido que as aparências e os comportamentos dos adultos tentavam disfarçar na minha presença, mas que chegava até mim e me fazia desejar ser assim quando crescesse, uma mulher a cheirar a YSL e a tabaco. Agora que cheiro assim, fico cheia de inveja das miúdas que cheiram a champô e óleo Johnson’s. Acho que têm um cheiro lavadinho, uma coisa pura e sem falhas. Pressuponho-lhes as pernas sem celulite, os seios firmes e orgulhosos, os cabelos fartos e brilhantes e sinto os meus trinta e um anos a pesar-me. Mas conforta-me a minha sabedoria, aquilo a que chamamos maturidade e que os ingleses chamam, se traduzirmos à letra, adulteza e que é uma palavra magnífica para designar o que mais valorizo hoje nas pessoas que me rodeiam. Maturidade soa a coisa que está no ponto mas que já não se aguenta por muito mais tempo. Adulteza é coisa sólida, firme, coisa construída a pulso para gerações futuras apreciarem. (Cada vez gosto mais da língua inglesa.)
Toda a vida me lembro de fazer listas intermináveis das tarefas todas que acho que tenho de cumprir num determinado período de tempo. Lavar a loiça, estender a roupa, cortar as unhas, fazer depilação, ir ao supermercado, ir à lavandaria, levar o gato ao veterinário, fazer sopa, sacudir, aspirar, arrumar, regar as plantas, mandar três mails a três pessoas com três assuntos diferentes, fazer uma transferência bancária, carregar o telemóvel, pagar a luz, a água e o gás, entregar o filme de ontem no clube de vídeo, ir à farmácia, ao sapateiro, comprar cigarros, gravar um cd, levar o lixo e as garrafas para o vidrão e marcar a consulta no dentista. Chego ao cúmulo de estabelecer um tempo para cada tarefa. Não me lembro de alguma vez ter cumprido algum. Geralmente, quando faço listas de coisas para fazer, não faço nada.
Sempre que ando de transportes públicos e vejo alguém a ler um livro faço os possíveis para tentar ver que livro está a pessoa a ler. Quase sempre são os livros da moda, os best sellers ou, à moda do Alexandre O’Neill, as bestas céleres. Há uns tempos era o Código da Vinci e outros derivados do Dan Brown, depois veio a febre do Equador do Sousa Tavares, agora são os romances pseudo históricos do José Rodrigues dos Santos e outros sucessos de prateleira. Nunca ninguém me surpreendeu com um William Faulkner ou uma Marguerite Yourcenar ou um Samuel Beckett ou um Herberto Helder ou um Philip Roth... Onde andarão as pessoas que lêem esses livros? Vão todas de carro para o trabalho? Ficam em casa a devorá-los sem conseguir parar para saír? Gostam tanto deles que não os metem na mala para não dobrar os cantos nem sujar a capa? Há sempre aquelas capinhas de papel de fotocópia improvisadas que algumas pessoas colocam para não sujar o livro ou para não mostrarem o que andam a ler. Esses ainda me aguçam mais a curiosidade! Estico o pescoço e semicerro os olhos no esforço míope de tentar ler as letrinhas do topo da página com o nome do livro ou do escritor. Às vezes as pessoas apercebem-se que estou a espreitar-lhes por cima dos ombros e mostram-se incomodadas. É chato, é verdade. Mas não resisto. E não me parece que seja motivo suficiente para matar o gato, por isso, vou espreitando.
«A cidade estende-se desde filas de casas de bonecas ao lado do parque e através de um largo e esbatido ventre da cor de um vaso de flores vermelho, pontilhado de telhados escuros e carros cintilantes e termina com um tom rosado na bruma suspensa sobre o rio distante. Os reservatórios de gás cintilam por entre o fumo. Os arredores parecem cicatrizes. Mas a cidade é enorme no centro e ele abre a boca como se quisesse forçar os lábios da alma a receberem neles o gosto da verdade, como se a verdade fosse um segredo diluído numa proporção tão baixa que apenas a imensidade lhe pudesse dar um sabor perceptível. E é na sua boca que o ar seca.
O seu dia foi perturbado por Deus: Ruth troçou, Eccles pestanejou... Porque te ensinam tais coisas se ninguém acredita nelas? Daqui parece simples que, se existir um chão, tem de existir um tecto e o espaço verdadeiro em que vivemos é o espaço superior. Alguém está a morrer. Nesta grande extensão de tijolo, há alguém moribundo. Aquele pensamento chega-lhe sabe lá de onde: simples percentagens. Alguém nalguma casa daquelas ruas morre, se não for naquele minuto será no próximo, e Harry crê que o coração dessa rosa abatida e prostrada se encontra naquele peito subitamente petrificado. Procura o lugar com os olhos, esperando talvez ver a alma de um velho enegrecida por um cancro ascender através do azul como uma marioneta. Aguça os ouvidos para escutar o ruído da libertação quando a ilusão avermelhada aos seus pés abandonar esta realidade. O silêncio atordoa-o. Filas de carros que se movem lentamente sem fazer ruído; um ponto sai de uma porta. Que está ele aqui a fazer no meio do ar? Porque não está em casa? O terror invade-o.»
Corre, Coelho