28 de dezembro de 2008

Gato fantasma


23 de dezembro de 2008

No princípio, era o Verbo

As coisas só se nos revelam depois de nomeadas, ditas. Podemos andar todos a brincar ao gato e ao rato, a lançar sorrisos e lágrimas uns aos outros, sem nos amarmos nem nos odiarmos, até ao dia em que alguém diz “Estou aqui e sou isto e gosto de ti” ou “Estou aqui e odeio-te, por isso deixa-me em paz”. A partir desse dia, a amizade, o amor, o ódio passam a existir. E sempre que nos cruzamos com os olhos do outro sabemos o que lá está, à espera de uma oportunidade para nos atravessar. Começamos a ter expectativas, a cobrar, a ter desilusões…
Eu sou daquele tipo de pessoas que diz, diz, incansavelmente. Tendo a não acreditar no que não sei, no indizível. Esta ânsia de traduzir tudo, esta ilusão de poder que me dão os nomes das coisas, custa-me muitas desventuras. Continuo, passados trinta anos, a não saber o que é melhor: traduzo tudo e tenho de viver com o peso dos nomes das coisas, ou aceito que há coisas que não se dizem e devem ser deixadas no silêncio primordial?
Há magia nas coisas ditas. Mas a magia pode às vezes ser negra e até fatal, irreversível. Para as maçãs envenenadas geralmente há um antídoto, mas para os abracadabras não.
Preferia que algumas coisas não fossem ditas, para não terem de existir. Preferia ficar pelos sorrisos e pelas lágrimas a serem lançados e que isto fosse tudo assim mais leve e transparente. Eu, que sou amante das palavras, sei que às vezes elas podem quebrar o equilíbrio frágil de um silêncio natural e puro para criarem um turbilhão de frémitos arrebatados ou de equívocos e desconfortos. Mas escuto, digo, leio, escrevo. É a minha condição, a minha natureza. Bênção ou maldição, faz parte do que sou e da minha forma de estar no mundo e tenho de viver com as consequências dos meus verbos. É assim que passo agora os dias a pensar em coisas ditas e no que posso fazer para me aproximar o mais possível desse instante em que tudo principiou, desse instante em que não havia nomes para as coisas e podíamos fazer de conta que elas não estavam lá.

18 de dezembro de 2008

Gémeos

"E assim sou, fútil e sensível, capaz de impulsos violentos e absorventes, maus e bons, nobres e vis, mas nunca de um sentimento que subsista, nunca de uma emoção que continue, e entre para a substância da alma. Tudo em mim é a tendência para ser a seguir outra coisa; uma impaciência da alma consigo mesma, como uma criança inoportuna; um desassossego sempre crescente e sempre igual. Tudo me interessa e nada me prende. Atendo a tudo sonhando sempre; fixo os mínimos gestos faciais de com quem falo, recolho as entoações milimétricas dos seus dizeres expressos; mas ao ouvi-lo, não o escuto, estou pensando noutra coisa, e o que menos colhi da conversa foi a noção do que nela se disse, da minha parte ou da parte de com quem falei. Assim, muitas vezes, repito a alguém o que já lhe repeti, pergunto-lhe de novo aquilo a que ele já me respondeu; mas posso descrever, em quatro palavras fotográficas, o semblante muscular com que ele disse o que me não lembra, ou a inclinação de ouvir com os olhos com que recebeu a narrativa que me não recordava ter-lhe feito. Sou dois, e ambos têm a distância – irmãos siameses que não estão pegados.”

Fernando Pessoa,
in Livro do Desassossego

4 de dezembro de 2008

Sonic Marilyn

24 de novembro de 2008

REAGIR

Hoje dormi três horas e acordei com a cabeça a rebentar e os ouvidos a apitar. Cumpri os meus rituais e saí para trabalhar. Na confusão do autocarro um homem empurrou o seu corpo contra o meu durante uma boa parte do percurso olhando-me com um ar nojento, sem que eu pudesse evitá-lo. Limitei-me a lançar-lhe num olhar toda a raiva que consegui. Passei o dia a arrastar-me como uma lesma deprimida no escritório e a rogar pragas a todas as pessoas que se cruzaram no meu caminho. Chega. Tenho de levantar o nariz e deixar de ter muita peninha de mim. A próxima vez que um homem nojento se colar a mim no autocarro vai ouvir das boas ou experimentar a firmeza do meu cotovelo. Ai vai, vai!

18 de novembro de 2008

Cabeça nas mãos



















Assim sofro pelo amor perdido

O desgosto fez-me perder metade do cabelo.


Vou pô-lo aos caracóis e arranjá-lo,
Pronta para o que der e vier...


in Poemas de Amor do Antigo Egipto

14 de novembro de 2008

8 de novembro de 2008

Not so funny games











Jogo um jogo para o qual não fui convidada e do qual não conheço as regras. Vou percebendo aos poucos o que fazer, quase por instinto, como se tacteasse um caminho na escuridão. O que mais me incomoda é jogar este jogo com alguém e sentir que é essa pessoa que dita as regras. Chateia-me porque sempre achei mais confortável fazer as coisas à minha maneira. Sabendo que se cair e esfolar um joelho ou partir a cabeça, não tenho de culpar ninguém. A responsabilidade da minha dor é exclusivamente minha.

Para algumas pessoas, culpar alguém pelas suas dores talvez possa minimizá-las um pouco. Isso é provavelmente instintivo, também, e não tem nenhum tipo de maldade subjacente. Tem antes um pouco de fé, pois se culparmos alguém ou alguma coisa isso faz de nós seres puros e inocentes, vítimas de um destino superior, do acaso ou simplesmente da nossa natureza e assim, desresponsabiliza-nos um pouco pelos nossos actos.

Eu prefiro acreditar que posso assumir a responsabilidade dos meus actos e das consequências negativas que eles possam ter. Prefiro pensar que dependem das minhas escolhas e decisões e que ser responsável por eles, bons ou maus, sem moralismos nem dramas, faz de mim um ser mais íntegro, mais coerente.

Sei que tudo isto pode não passar de uma ilusão que me imponho para acreditar que consigo coisas. Que consigo ir mais além neste curto espaço de tempo que temos para fazer um caminho. Sei que posso fazer-me acreditar no que eu quiser, quando eu quiser, mas que isso pode nunca mudar nada ou, simplesmente, não chegar a tempo.

Mas sei-o.

É por isso que me chateia jogar este jogo para o qual não fui convidada. Porque não sei o que é, como funciona, que hipóteses tenho de ganhar ou perder, e muito menos o quê.

26 de outubro de 2008

O pior nem foi ter decidido fazer este filme, mas ter feito todos os outros que o antecederam. E ter visto muitos. E ter esperado muita coisa deles. O pior... o pior ainda está para vir.

16 de outubro de 2008

Valsa Quase Antidepressiva

Dança comigo a primeira valsa da Primavera
Dança sem sonhos, esquece as promessas, ninguém nos espera
Já enchi os dias de lutas vazias: estou gasto, cansado, dormente
E a um pouco de sexo, ou muita poesia, ainda não fico indiferente
Fala comigo na palavra falsa da fantasia
Chovem amigos na festa da praça do meio dia
É certo que as flores parecem maiores que toda a virtude do mundo
Com um pouco de sexo, ou muita poesia, ainda me sinto profundo.

Se este mundo fosse feito para ser doce eu seria doce fosse eu quem fosse

Foge comigo na última volta da maratona
Nada comigo num lago indeciso de metadona
Já deixei as asas na cave da casa e as chaves no fundo do mar
Com um pouco de sexo, ou muita poesia, ainda nos vamos casar

JP Simões

7 de outubro de 2008

Valerá a pena?

E não é que os dias encolhem mesmo?
E o Sol.
E o tempo.
E o sono.
E a vontade.
A única coisa que não encolheu por aqui foi o trabalho...







15 de setembro de 2008

September Song

Well, it's a long, long time
From May to December.
But the days grow short,
When you reach September.
And the autumn weather
Turns the leaves to gray
And I haven't got time
For the waiting game.

And the days dwindle down
To a precious few
September, November
And these few precious days
I spend with you.
These precious days
I spend with you.

14 de setembro de 2008

A menina dança

11 de setembro de 2008

Silêncio

Silêncio. Embora adore todo o tipo de sons, esta é uma das palavras mais poderosas que conheço. Será porque a associamos à morte? Haverá mais silêncio noutro lugar que não na morte? E, no entanto, que tranquila é normalmente a face dos que já não estão no seu corpo. Podemos experimentar o silêncio à nossa volta de forma mais ou menos agradável, mas nunca com o poder com que sentirmos o nosso próprio silêncio, o que nasce cá dentro.
Lembro-me de apagar as luzes, de fechar as portas e as janelas, de ficar fechada no mofo e no escuro durante muito tempo, mas sempre houve vozes a acompanhar-me, a dar-me indicações, a guiar os meus passos trémulos pelos meus corredores. Essas vozes sempre me fizeram sentir velha por dentro, como se a minha vida tivesse muitas vidas dentro dela e assim, nesse abismo infinito, a minha história não tivesse um princípio com dia e hora marcados, ao contrário do que dizem os meus pais. E sempre aprendi, sempre cresci, mesmo quando tinha de ouvir aquelas coisas que nos magoam e nos aparecem passado muito tempo num sonho qualquer. Mas agora sinto que alguma coisa mudou. Embora haja já alguma luz a entrar, o silêncio é uma almofada gigante dentro do meu peito e eu acordo de manhã a cuspir bolas de algodão. Este silêncio só se sente quando se ouve e, por algum motivo, se fica surdo. Para sempre. É o tipo de silêncio que me afasta da realidade dos outros e me deixa descansar um bocadinho. Descansar dessas vidas todas que me envelhecem, descansar das vidas dos outros. Este silêncio é o meu Outono, é a minha morte, necessária para que haja Primavera dentro do meu peito outra vez e as vozes possam, então, não se calar.

5 de setembro de 2008

Way to Blue

4 de setembro de 2008

Salvem os macaquinhos do sótão

Nos últimos dias os macaquinhos do meu sótão têm estado meio ausentes. Passam muito tempo a ler cartas antigas, a ver filmes daqueles em Super 8, amarelos e cheios de riscos. Contam histórias uns aos outros, pensam nos tempos em que foram felizes, olham pela janela e suspiram. De vez em quando levantam-se, abrem a janela e inspiram o ar fresco para se manterem despertos para o mundo que está lá fora. Não peçam é aos macaquinhos para se concentrarem em coisas práticas do dia-a-dia, porque agora eles não vão conseguir. Agora só querem viver das suas memórias como se já fossem muito velhos e o mundo já não tivesse nada de bom para lhes ensinar. Eles abrem os jornais e acham que está tudo mal no mundo inteiro, que isto vai ser sempre igual, dia após dia, ano após ano, ou então que isto está tudo cada vez pior, como os velhinhos. Se alguém lhes perguntar alguma coisa eles vão demorar a responder ou então não respondem porque estavam distraídos e não ouviram. Não lhes apetece trabalhar, não lhes apetece conversar com outras pessoas, não lhes apetece ouvir música, não lhes apetece comer nem beber e dormir é difícil porque estão cheios de insónias. Acordam a meio da noite e pensam que o cão da vizinha devia morrer ou que a própria vizinha, a dona do cão, devia morrer, ou que todos os inquilinos do prédio deviam morrer. E no fundo os macaquinhos até são bonzinhos, estão é numa fase má. Por isso deve dar-se-lhes espaço e tempo para eles remexerem nos baús todos porque eu sei que eles mais dia menos dia hão-de fartar-se. Até lá talvez alguém possa ter alguma ideia. Vamos esperar.

1 de setembro de 2008

A normalidade é um mito

"Ora bolas, a nossa história de amor é mesmo especial! Nada convencional, admito, mas há alguma coisa que seja convencional? Basta levantar a tampa de qualquer vida e o que se vê a borbulhar é estranheza; por trás de cada porta só há idiossincrasias e bizarrias. A normalidade é um mito. Os seres humanos não são normais. Somos uma raça esquisita, essa é que é a verdade: apanhada, chanfrada."


19 de agosto de 2008







Os dias para ele são sempre cinzentos.

E eu ainda me queixo dos meus!

18 de agosto de 2008

Sonho de uma noite de Verão


Nem sempre podemos fazer as coisas quando queremos e como queremos. O que acontece normalmente é que fazemos planos, para as coisas correrem sempre de forma absolutamente diferente do que planeámos. O meu último fim de semana é a prova irrefutável de que o dia 15 de Agosto é o pior dia do ano inteiro, pelo menos na península ibérica, para tentar planear sair de casa, seja para onde for.
A ideia começou por fazer sentido porque é Verão, porque eu e o Zé gostamos de ir à praia, de acampar, de passar alguns dias num sítio longe de Lisboa, do trânsito, do computador, da playstation e dos programinhas da TV. Parecia perfeito imaginar-me num canto qualquer com uma pequena tenda e uma rede, à sombra de uma árvore a ler um livro ou simplesmente a dormitar ao som do vento e do canto dos pássaros. E assim, uma pequena tenda, uma rede, umas mantas para por no chão e alguma roupa são metidos num carro para zarpar rumo à costa vicentina, com um camping como destino. Para ajudar, o Zé decidiu estrear o GPS e contámos com um simpático clone da Conceição Lino a dizer-nos para virar à esquerda ou à direita, sem termos de andar às voltas com um mapa gigante que eu tenho sempre dificuldade em voltar a dobrar da mesma maneira.
Chegados ao camping, percebemos que não ia haver espaço para tranquilidades porque meio Portugal e mais um ou dois quintos de Espanha decidiram enfiar-se em tendas nos metros quadrados mais próximos da nossa costa. Camping um, camping dois, camping três, enfim... Muitas tentativas e muitas centenas de quilómetros depois, eis-nos a aterrar em Sesimbra, no meio da noite, para nos enfiarmos num pequeno iglo entre vizinhos com graves problemas respiratórios que me impediram de pregar olho a noite inteira. Tudo junto só podia melhorar ainda mais com uma bela reviravolta do clima que nos presenteou com umas gordas nuvens cinzentas por cima da cabeça, a descarregar um pouco da sua ira molhada sobre o que restava do projecto de fim de semana e do pequeno sonho de Verão. Ainda tentámos tomar o pequeno almoço e descemos a encosta rumo ao bar, passando pela ala das famílias que levam tudo o que possa haver em lona ou plástico e montam as suas vivendas de férias em dois metros quadrados, mas a chuva molhou-nos o café e, assim sendo, desistimos.
Dissemos adeus ao fumo das sardinhas, à chuva na praia, às tendas, aos estóicos campistas que ficaram para trás na fila para o duche quente com os chinelos na mão, na fila para a casa de banho, na fila para o pão, na fila para o café, na fila para entrar ou para sair e regressámos a casa, à nossa cama confortável, ao nosso sofá e à TV e ao computador e à internet e à Playstation e passámos o resto do fim de semana tranquilamente enroscados em lençóis lavados a cheirar a amaciador. (O nosso gato agradece a nossa companhia a todas as famílias que decidiram acampar este fim de semana!).

10 de agosto de 2008

Nostalgias


Falta-me tempo dentro da alma, por isso não tenho calma. Sufocam-me os dedos dos outros por entre os meus dias vazios e já não consigo escolher desenrolá-los do meu pescoço. Quem me dera que os dias e as noites voltassem a ser só isso mesmo e os cheiros das coisas andassem de novo no ar. Subir a um banco e espreitar à janela as cores que passam na rua. Outra vez as nuvens, o mar, o pão e sabê-los de cor no meu peito e na minha língua e desmontar problemas e correr sem apanhar ninguém.
Para quando o final destas dores de regressar, destas ânsias de procurar-me onde me perdi? Espero sentada à luz de um candeeiro que as chuvas regressem à minha cidade para percorrer as suas infinitas ruas debaixo do avassalador cinzento do Inverno porque já não sei distinguir o Verão no meio das coisas todas que me pedem para fazer.

16 de julho de 2008

SO REAL

Love, let me sleep tonight on your couch
And remember the smell of the fabric
Of your simple city dress

Oh... that was so real

We walked around ‘til the moon got full like a plate
The wind blew an invocation and I fell asleep at the gate
And I never stepped on the cracks 'cause I thought I'd hurt my mother
And I couldn't awake from the nightmare that sucked me in and pulled me under
Pulled me under

Oh... that was so real

I love you, but I'm afraid to love you
I love you, but I'm afraid to love you

Jeff Buckley

15 de julho de 2008



O sentido maior de todas as coisas. Nos últimos dias as dúvidas todas, as clássicas, juntaram-se na minha cabeça. Quando estou assim parece que há qualquer coisa que muda e acontecem coisas diferentes. Os sentimentos esticam-se. Os fios entrelaçam-se todos, formam um tecido que me enrola.
Lembro-me de acordar de manhã e olhar tudo à minha volta com a estranheza de quem não compreende como aterrou aqui, como se tivesse viajado no tempo e no espaço e não fizesse parte, de facto, desta era em que andamos para lá e para cá de carro e a falar ao telemóvel, como se tudo estivesse em suspenso para além de mim e eu pudesse pensar a realidade a partir de fora. Penso no tempo da terra. Não sinto o tempo da minha vida mas o tempo das coisas todas, o tempo do universo. Pergunto-me se o que podemos ter ganho supera tudo o que temos vindo a perder... Esta sensação é-me surpreendentemente dolorosa, desperta todas as minhas solidões adormecidas, domesticadas, aperta-me o pescoço até as lágrimas começarem a cair-me em silêncio. O meu corpo muda, fraqueja, não consigo fazer com que ele acompanhe a velocidade dos meus pensamentos. Permaneço demasiado tempo à espera de revelações, de explicações.
Quando chego aqui tento perceber o que me trouxe de volta à nuvem cinzenta das indefinições. Desta vez não é difícil. Nos últimos meses esqueci-me de mim e da minha vida e entreguei-me à loucura selvagem do trabalho de sol a sol. Tanto Verão para viver e eu para aqui a gastar os dias e as noites entre sufocos condicionantes de alcatifas e ares condicionados... É tempo de mudar.

24 de junho de 2008

Decidi fazer um blog para escrever, partilhar ideias.
Depois veio o Zé e comprou-me uma Playstation...



29 de maio de 2008

Persona(gens)


«Não acha que eu compreendo? O impotente sonho de ser. Não de parecer, mas ser. Consciente em cada momento. Vigilante. Ao mesmo tempo o abismo entre o que és para os outros e para ti próprio. O sentimento de vertigem e o desejo final de estar finalmente exposto. De ser visto através, cada gesto uma falsidade, cada sorriso um esgar. Cometer suicídio? Oh, não! É horrível. Não se faz isso. Mas pode ficar imóvel, em silêncio. Pelo menos não mente. Pode fechar-se dentro ou fora. Então não terá de representar, mostrar qualquer rosto ou fazer gestos falsos. Pensa que... Sabe... a realidade não é cooperante. O seu esconderijo não é estanque. A vida infiltra-se por todo o lado. Você é forçada a reagir. Ninguém pergunta se é real ou irreal, se é verdadeiro ou falso. É só no teatro que a questão tem peso. Até mesmo poucas vezes. Compreendo-a Elisabet. Compreendo o seu silêncio, a sua imobilidade. Que tenha colocado esta falta de vontade num sistema imaginário. Compreendo e admiro-a. Acho que devia manter essa representação até estar esgotada, até já não ter interesse. Depois pode abandoná-la. Tal como, pouco a pouco, deixa todos os outros papéis»

PERSONA, Ingmar Bergman

15 de maio de 2008

Começo



Perco-me em sensações novas. Descubro que os meus olhos adoram cores fortes e a minha pele o calor do Sol. O horizonte das minhas paisagens alarga-se. O Verão chega pela primeira vez com grande alarido em mim. Nem sei como digerir o verde todo que me entra pelos olhos dentro até transbordar, ou o azul todo do céu que me puxa para cima, bem alto, onde não há nada para além do ar fresco a bater-me na cara e a puxar para trás os meus cabelos.
Sou livre. Livre de me perder na luz do Sol com o entusiasmo de uma criança que descobre o mundo pela primeira vez. Livre de sentir o que cada segundo me possa trazer de novo. Livre de me ir embora para qualquer outro lugar a qualquer momento. Estou aberta ao mundo. Sinto tudo sem constrangimentos. Não me interessam o passado nem o futuro. Quero ser feliz agora.
E a felicidade pode ser uma corrida até lá abaixo, ao pé do mar, ou um mergulho na espuma branca das ondas. Nunca é tarde para arriscar!
Dou-te a mão, enterramos os pés na areia e eu digo-te «Hoje passei por um campo cheio, cheio de papoilas vermelhas. Senti o cheiro do Verão entrar-me pelas narinas enquanto caminhava em direcção ao mar, mãos abertas, vermelho nos olhos.» É bom ter alguém a quem dar a mão e falar sobre as cores! O vento vem despentear-nos os cabelos. Pensamos na corrida. Não temos pressa. Ainda há muito Verão para sentir, descobrir. E tu dizes-me «Que pena não podermos aproveitar melhor o vento... Se ao menos tivéssemos asas, ou velas, podíamos percorrer o azul...» e os teus olhos brilham, a tua vontade cresce luz adentro.Um, dois, três! Aqui vamos! O barulho dos pés na areia... Pára! Detemo-nos um momento. Saboreamo-lo. Uma onda vem molhar-nos os pés. Esperámos tanto tempo por isto tudo, agora é preciso sabermos muito bem de que matéria queremos ser feitas. Por dentro e por fora. Como as árvores com cascas duras, vidas inteiras de histórias para contar, folhas verdes, frutos, sombra... Como as árvores.