Fim de semana das viagens de autocarro entre as minhas duas cidades minhas duas casas minhas duas mães. Talvez me sinta mais feliz que nunca quando viajo por ser assim desenraizada, assim de um meio qualquer, de um entre sítios vários, casas, mães, raízes de fora. Hoje decidi prolongar a estadia e sair mais tarde. Pude passar mais tempo com a família e a lareira e os confortos de não fazer nada e ter tudo à mão. É já noite quando parto. Sento-me no autocarro. Chove bastante lá fora. Encosto a cabeça para trás e escolho a música que vou ouvir. O autocarro arranca e eu carrego no play. Imediatamente as imagens e as sensações se me atropelam garganta acima. E sou eu cheia de cores e dores a ir de um lado para outro e com tanta coisa cá dentro e as coisas todas precisavam de um sítio para estar mas eu não tenho esse sítio porque dentro de mim também há sempre comboios a partir e aviões a descolar e o clima é instável por isso não é fácil eles regressarem porque há sempre cheias e nevões e tempestades de areia e vulcões e as coisas nunca regressam ao mesmo sítio porque a lava e as avalanches são assim mesmo e tudo muda de sítio, tudo muda de sítio, nunca nada nunca mais outra vez igual me deixa descansar e ganhar raízes. E ainda por cima agora vai ser Natal outra vez. Volta a ser outra vez obrigatório as pessoas sentirem coisas boas, estarem felizes, em paz e harmonia. Volto a estar sempre triste por saber que não sou feliz, por saber que não consigo ser como as outras pessoas nessas coisas simples e banais como gostar de conduzir e de bebés e de caracóis e do Natal e da passagem de ano e de estar feliz porque é festa e é tempo de alegria. E gostava de ter coragem para ser o que devia ser mas para isso é preciso cortar logo as primeiras raízes mal elas comecem a nascer e eu sempre tive medo disso, da dor de as cortar logo em rebento e de tentar ir ganhar outras para outro sítio qualquer ou de tentar viver sem elas para sempre como algumas pessoas vivem sem um rim ou sem uma perna. Ainda assim, dizem que essas pessoas às vezes têm dores nos órgãos e nos membros que perderam. Deve ser o cérebro delas que não os quer perder. O meu se calhar não quer perder as raízes e por isso doem-me mesmo aquelas que nem chego a ter e as que eu já não tenho porque tive de as cortar para me nascerem asas. Sobre as asas é que eu percebo ainda menos. As pessoas voam muito muito muito mas depois caem mais que os aviões e toda a gente sabe que neste tipo de desastres há sempre muitas perdas...