19 de julho de 2012

Through the looking glass


Olho-me ao espelho mas nunca sei bem o que ver. Todos os dias há um olho mais aberto, outro mais fechado. Há um cabelo diferente. Há marcas novas e pêlos que eu quero que nunca tenham nascido e arranco furiosamente.  Nunca soube se sou feia ou bonita. Nas fotos sou sempre outra pessoa que eu não conheço. No espelho sou sempre um ser que só existe ali, do outro lado, e que me surpreende ou me assusta. Nunca gostei do facto de ter olhos pequenos, mas gosto de não ter um nariz grande. Às vezes sou muito parecida com a minha mãe.  O que mais me incomoda é olhar-me com a mesma estranheza com que oiço uma gravação da minha voz. Nunca me reconheço. Não faço ideia de quem sou e olho-me sempre como se a pessoa que está ali fosse outra e não eu. Sou estranha a mim própria e aos outros. Não-sou.

Queria acordar cedo e fazer muitas coisas. Em vez disso fico a dormir. Durmo, durmo e sonho com fábricas onde há corredores entre enormes pilhas de papel-higiénico em embalagens coloridas e se circula em pequenas carruagens. Onde há no meio de cada corredor uma fila de máscaras em forma de cabeça de leão, transparentes e brilhantes como medusas, que devemos colocar se o alarme tocar. Durmo, durmo e sonho-me a fugir numa selva densa e pantanosa de uns misteriosos e gigantescos tentáculos que saem dochão, com extremidades incandescentes como brasas e nos enrolam as pernas, contaminando-nos com uma doença que os permite depois localizar-nos sempre, onde quer que vamos. Depois de infectadas com o vírus, as pessoas podem morrer. Sabemos que estão quase a morrer porque, segundos antes, o seu cabelo cresce rapidamente em altura, encrespado e ruivo como fogo. Tentamos balançar no ar, pendurados em estruturas metálicas com lianas elásticas que nos balançam para trás e para a frente para não termos de tocar com os pés no chão. E quando eu percebo que afinal este sonho é só um filme, espeto os dedos nos olhos do realizador e digo que o filme não presta, não tem argumento, é só efeitos especiais. E durmo, durmo e no meio de tanta confusão ainda tenho medo de acordar e voltar para o mundo real.

Esta noite sonhei que estava a ver-me na televisão. Que estava a ver um filme em que eu era actriz. E pensava, que péssima actriz sou eu. Sempre que sei que estou a ser filmada a minha cara muda e pronuncio as palavras com maneirismos e expressões que não me são naturais. E nunca sei como é a minha verdadeira e espontânea expressão a falar. Quando falo com alguém em frente de um espelho, olho sempre para mim própria enquanto falo e não para o outro. Fico a observar-me, a tentar aprender quem é aquela rapariga ali a falar, e a questionar-me como será ver-me com os olhos de outra pessoa.  Quando falo no Skype é igual. Em vez de me concentrar na imagem do outro, fixo-me no quadradinho pequeno que tem a minha imagem, para poder imaginar como é ver-me. Nunca soube se sou bonita ou feia. Agora há uns anúncios que aparecem no Facebook para nós clicarmos e ficarmos a saber se somos bonitos ou feios. Quando vejo esses anúncios dá-me vontade de rir e penso, por favor, será que alguém é tão ingénuo ou inseguro que entre numa coisa destas? Há sempre quem esteja pior.

8 de junho de 2012

Au revoir

Gostei muito deste bocadinho.

23 de janeiro de 2012

Era preciso era coragem para mudar

Do you like what you’re doing?
Would you do it some more?
Or will you stop once and wonder
What you’re doing it for?

5 de novembro de 2011

Citações

"Antes das coisas, já existia Deus, mas só depois do homem é que ele vive."

Teixeira de Pascoaes

27 de outubro de 2011

Ser longe com os olhos





http://www.maureendrennan.net/

Vira o disco

Como é que se encara a possibilidade de se ser triste de fórma crónica, com lágrimas infinitas, para gastar e gastar até aos últimos dias de olhos abertos (ou apertados com força)? Como é que se encara a ideia de que o mundo é esta máquina indiferente e dura que se borrifa nas nossas enxaquecas e ansiedades e depressõezinhas e crises e a troika e o caralho? Como é que se aprende a ser quando já se soube tantas vezes e se desaprende sempre outra e outra vez cada vez mais depressa e mais profundamente? Como? E se deus não faz sentido porque não está para lá de nós, como encontrar aquele que se nos revela cá dentro? A merda da luz está sempre fundida. Sempre que chego a casa não vejo o buraco da fechadura. Qualquer dia nem o caminho para casa consigo voltar a encontrar e aí é que vão ser elas. Isto é assim: vá, toma lá isto com um copo de água logo de manhã para aguentares não gostar lá muito de ti própria. É como deixar os putos copiarem e não estudarem. O pessoal até tira notas suficientes para passar, mas não sabe nada. Quem me dera não saber nada. Devia ter copiado muito mais na escola.

22 de outubro de 2011

Antidepressivo

Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.

Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.

Como um ruído de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.

Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.

Não tenho ambições nem desejos
Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.

E se desejo às vezes
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),

É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela erva fora.

Quando me sento a escrever versos
Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,
Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,
Sinto um cajado nas mãos
E vejo um recorte de mim
No cimo dum outeiro,
Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas idéias,
Ou olhando para as minhas idéias e vendo o meu rebanho,
E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz
E quer fingir que compreende.

Saúdo todos os que me lerem,
Tirando-lhes o chapéu largo
Quando me vêem à minha porta
Mal a diligência levanta no cimo do outeiro.
Saúdo-os e desejo-lhes sol,
E chuva, quando a chuva é precisa,
E que as suas casas tenham
Ao pé duma janela aberta
Uma cadeira predileta
Onde se sentem, lendo os meus versos.
E ao lerem os meus versos pensem
Que sou qualquer cousa natural —
Por exemplo, a árvore antiga
À sombra da qual quando crianças
Se sentavam com um baque, cansados de brincar,
E limpavam o suor da testa quente
Com a manga do bibe riscado.

Alberto Caeiro, O Guardador de Rebanhos

20 de setembro de 2011

She´s Lost Control



But she expressed herself in many different ways,
Until she lost control again.
And walked upon the edge of no escape,
And laughed I've lost control.

O cerco


Tu estás num sítio e acontecem coisas nesse sítio que obedecem à lógica do senso comum que aprendeste com a vida. Os teus pais ensinaram-te a respeitar os outros para seres respeitado e isso devia ajudar-te a respeitares-te, também, a ti próprio. Onde começa e acaba esse respeito? Tu estás num sítio e fazes coisas diferentes todos os dias que servem para uma máquina funcionar e dessa máquina sai pão. Para ti e para os outros. Consoante o teu trabalho na máquina, recebes mais ou menos pães. E assim os outros contigo. Tu estás num sítio e acreditas que estás a fazer a coisa certa e que se não o fizeres alguém te avisa para poderes corrigir. Os dias passam. Tu aperfeiçoas-te. Respeitas-te e, por isso, és respeitado. Um dia chega um homem com outra vida e outras verdades e outras lógicas. Para fazer pão já não te pedem o mesmo. Agora é preciso pessoas para contar grãos de farinha. Quem mais grãos de farinha contar, mais pães recebe. Só que as pessoas, com o tempo, já não sabem a que sabe o pão, já perderam a receita. Fazem outra coisa que tem o mesmo nome do pão e que, por isso, passa a ser o pão. Mas ninguém se lembra como chegou ali. E tu, que nunca esqueceste a receita, tu que sabes que o homem está mais nú que o rei e que o pão sabe a pão e que o mar vai e volta em cada onda e que os homens são todos iguais no leito de morte, tu, sozinho, gritas.  Gritas um dia atrás do outro, voz rouca paredes fora, janelas fora, rua fora, casa adentro, gritas. Acordas o ser que a teu lado dorme por ter já desistido de procurar o teu silêncio dentro dos gritos. Acordas dores no teu corpo. Acordas pesadelos antigos que se formam uns atrás dos outros nas insónias longas da noite e depois saem pela cabeça, largando mãos cheias do teu cabelo no ralo da banheira. Acordas rios e lagos de lágrimas e convulsões e o teu corpo estremece e sacode-se e cai e levanta-se e cai.
Mas o homem diz que tu já não serves para trabalhar na máquina porque não sabes contar. E não te adianta dizer nada porque tu falas a língua dos vivos no mundo dos mortos e então só te resta morrer ou fugir. Não queres morrer e não podes fugir porque precisas do pão para não morrer. Mas também não podes ficar porque não sabes fazer o que o homem quer que tu faças. Então caminhas todos os dias em volta da cerca à procura de uma brecha. Todos os dias às voltas, às voltas, às voltas, o chão já gasto debaixo dos teus pés, os sulcos das lágrimas já marcados no teu rosto, o monte dos teus cabelos no chão, o teu corpo a fraquejar, o ódio e a raiva a matarem o teu amor pelo sol, pela vida, por ti. Até quando?

23 de julho de 2011

Carne viva

Para sempre.


Lucien Freud (1922-2011)

18 de julho de 2011

Poesia na cidade


 


















  
Robert Montgomery

Há a fé e há também a psicoterapia

Viver sem Deus, sem sol, sem luz, sem amar a vida e o próprio do coiro, pode ser viver sem  paz e sem descanso. Mas, de tempos a tempos, vale-me o paradoxo da fé nos homens e mulheres da ciência, para tentar chegar a essa coisa que alguns parecem saber bem de nascença e outros, como eu, lutarão a vida toda para encontrar. Sobem-se e descem-se arribas arranhando um braço ou outro. Ganha-se músculo.

"E quando o evento, a grande mudança na nossa vida, é simplesmente uma intuição, uma percepção... não é uma coisa estranha? Não é estranho que absolutamente nada mude, a não ser o facto de vermos as coisas de modo diferente, de termos menos medo e menos ansiedade e, de uma maneira geral, nos sentirmos mais fortes, em consequência disso: não é espantoso que uma coisa completamente invisível, dentro da nossa cabeça, possa dar a sensação de ser mais real do que qualquer outra coisa que experimentámos antes? Vemos as coisas mais claramente e sabemos que estamos a vê-las mais claramente. E tomamos consciência de que isso significa amar a vida, de que é disso que quem fala a sério a respeito de Deus está sempre a falar. Em momentos assim."

Jonathan Franzen, Correcções


9 de junho de 2011

Karl Blossfeldt








Quando descobri este senhor, foi assim.
O ser na planta, delicado, ambíguo.

16 de maio de 2011

Pó no chão

Pelo soalho escuro caminho descalça. Pó, cotão, pêlo de gato, migalhas, tudo se me cola aos pés. O dia a dia da casa cola-se-me aos pés, como se os restos da pele que vai morrendo, espalhados pela casa, pudessem ir-se acumulando em camadas até formar outra vida, outro corpo igual ao meu com quem partilhar os dias e as noites. O sol está forte lá fora, mas a cortina amarela transforma a luz que entra na sala numa fotografia antiga, onde os objectos parecem suspensos, imortais, onde até eu me sinto perder substância. Sento-me, acendo um cigarro, concentro-me no fumo que entra espesso e sai rarefeito do meu corpo. Pouca coisa faz sentido na minha cabeça hoje e respirar é um maravilhoso e salvador mecanismo que me permite não morrer, mesmo quando me esqueço de ser. Mesmo quando o meu corpo não sou eu e a minha identidade se perde na confusão da ansiedade e da tristeza. A solidão é um porto de abrigo. A solidão é um buraco negro que eu carrego desde que me lembro, é o monstro que eu alimento com carinho porque já não sei viver sem ele. Como uma criança fechada numa cave desiste de tentar fugir, mesmo sofrendo todos os dias. Seremos nós assim tão caninos e cobardes? E os que supostamente são heróis e põem a sua vida em risco, não o fazem também porque não têm esperança em mais nada, ou por fanatismo? Porque onde é que tudo começa e recomeça? As perguntas nestes dias são sempre mais que muitas. As respostas demoram sempre muitos dias e muitas lágrimas a chegar. Muitas insónias, muitos cigarros, muitas páginas em branco... Tenho de aspirar o chão da sala. Vou ver o que está a dar na televisão.


Fotografia - W. Eggleston

2 de março de 2011